terça-feira, 17 de maio de 2016

Jogo de Pife


Juninho: – Eu faço três!
Santo: – Três? Você está com o quê? O Ás, o Rei e a Dama de espadas?
Nego (rindo): – Calma, Santo. Está na cara que ele não entendeu o jogo!
Santo (sussurra e pisca para Nego): – Eu sei, eu sei...
Marques: – Juninho, você tem certeza que vai pedir pra fazer três?
Juninho: – Claro que sim! Olha aqui – ele vira seu maço de cartas para Marques, que o recua com as mãos.
Marques: – Não, não! Eu não quero ver as suas cartas!
Chico (rindo enquanto fala): – Nem precisava virar pra ele, até daqui eu já to vendo tudo!
– CHICO! – exclamam Santo, Nego e Marques em coro. Juninho recolhe suas cartas rapidamente e esconde-as no colo. Uma enorme gargalhada vinda do outro extremo da mesa preenche o ambiente. Ela pertence ao mais velho dos seis ali presentes.
Professor: – Que coreografado, hein?! Ficaram ensaiando antes de nós começarmos o jogo?
Os quatro riem um pouco constrangidos, pois Chico já estava rindo antes e ainda não havia parado. Juninho olha para Nego, o próximo jogador a falar.
Nego: – Eu faço uma.
Santo: – Ah, eu não faço nada.
Professor: – Então comece, Chicão.
Chico joga uma carta na mesa.
Chico: – Três de copas.
Marques: – Minha vez. Dez de copas.
Juninho (animado): – Agora é minha vez! Ás de paus! Há!
Os cinco fitam Juninho com olhar interrogativo.
Marques: – Você não tem nenhuma carta de copas, Juninho?
Juninho: – Não, mas não precisa né?! Com essa eu ganho, é um Ás!
Chico: – Xi...
Professor: – É um Ás, mas como a gente começou pelo naipe de copas, ela não vale nada nessa rodada. Só se fosse do naipe de copas, ou se fosse trunfo...
Nego: – Trunfo como essa daqui! – e joga um Três de espadas.
Professor: – Viu, com essa dá pra ganhar.
Juninho (indignado): – Mas, mas, ela é pequenininha! É só um Três, como vai ganhar de um Ás ou de um Dez? Isso não é justo!
Santo: – Eu sabia que ele não tinha entendido! – e começa o burburinho na mesa.
Chico (olhando para o Professor): – Ai, ai... E agora, José? Melhor por ordem na casa, Mestre.
Professor (acenando com as mãos): Calma, pessoal. Sem encrenca. Acho melhor mudarmos para outro jogo...
Santo: – É verdade! – e os outros concordam com a cabeça. Marques começa a recolher e embaralhar as cartas que eles vão jogando sobre a mesa.
Professor: – Vamos jogar algo mais tranquilo, pra que enquanto jogamos vocês possam me contar sobre suas peripécias desses últimos dias... – e os cinco se animam ao ouvir essa última frase.
Chico: – Agora está falando minha língua! Vamos saber o que esta garotada anda aprontando...
Marques: – Certo, mas o que vamos jogar então?
Juninho: – Vamos jogar pife!
Santo: – Pife? É, pode ser...
Nego: – Mas esse você sabe certo, né Juninho?
Juninho: – Claro que sei! Nove cartas pra cada um; compra e descarta uma a cada rodada; tem que fazer sequências do mesmo naipe ou três cartas de naipes diferentes; e ganha quem fazer isso com as nove ou com dez cartas.
Chico: – Muito bem, Júnior!
Santo: – Mas vamos jogar isso mesmo?
Marques: – Professor?
Os cinco olham para o Mestre, esperando uma resposta. Ele para um pouco, pensa e depois responde.
Professor (sorridente): – Tudo bem, joguemos pife então!
Juninho: – Oba! – Todos se animam igualmente e Marques começa a distribuir as cartas.
Professor: – Muito bem, então quem vai começar os relatos dessa semana?
Juninho: – Eu! Eu quero começar!
Professor: – Alguma objeção? – os demais acenam para que ele comece – bom, por unanimidade, comece Júnior! Qual foi a sua peripécia?
Juninho: – Pessoal, foi muito divertido! Uns colegas meus da escola me convidaram pra jogar bolinhas de gude, mas eu não tinha nenhuma. Aí tive uma ideia! Peguei umas bolinhas de chumbo que o meu pai tem lá em casa, não sei pra quê ele as usa, e usei-as no lugar. Ganhei de todos eles, voltei pra casa com uma sacola cheia de bolinhas de gude!
Chico (caçoando): – Todas elas quebradas, né? – os outros quatro riem também.
Juninho: – Ah, mas foi divertido!
Marques: – E o seu pai, não sentiu falta das bolinhas de chumbo?
Juninho (hesitante): – Bom, é... Ele me deu uma surra depois e jogou fora todas as bolinhas que eu tinha conseguido... – e mais uma vez os cinco desatam a rir, deixando Juninho constrangido.
Professor (irônico): – E hoje aprendemos que trapacear com bolinhas de chumbo não compensa. Quem é o próximo? Que tal você, Nego?
Nego se ajeita em sua cadeira e estufa o peitoral.
Nego: – Meus caros, fui eleito o melhor jogador de vôlei do estado!
Chico: – Olha só! Parabéns! – todos o aplaudem.
Marques: – Verdade. Eu soube que você até deu entrevista pro canal doze!
Nego: – Ah sim, e isso foi logo depois de ganharmos o último jogo do campeonato estadual. O treinador havia me deixado na reserva e estávamos perdendo, mas ele havia feito isso só para me colocar no final e virarmos o jogo! Vocês deviam ver, foi formidável!
Chico: – Que beleza, hein?! Só vinte e poucos anos e já fazendo história!
Santo: – E a sua jovem amada?
Nego: – Ah, a Martinha está ótima! Sentimos falta um do outro quando fui jogar no interior, mas ela se alegrou muito com minha vitória e me viu na televisão. Ela é maravilhosa!
Marques (caçoando): – Então estão valendo à pena os pinicos cheios que a sogrinha joga pela janela pra te molhar?
Nego (muda o tom, incomodado): – Ah, nem me lembre disso!
Professor: – Muito bem, muito bem. Deixemos os pinicos de lado e vamos para o próximo. Santo?
Santo: – Claro, Professor. Mas não posso dizer que tenho boas novas. Como sabem, além de trabalhar como professor eu sou cantor lírico, mas nunca conseguiria realmente viver disso aqui. Porém, alguns dias atrás, minha mestra de canto me convidou para fazer parte de uma camerata no Rio de Janeiro, como profissão mesmo, inclusive com passagem e apartamento pago para que eu morasse lá. Mas tive que recusar.
Nego: – O quê?
Juninho: – Por quê?
Santo: – Porque, Juninho, o contrato dizia respeito somente a mim, e eu não posso ir e deixar minha esposa e os cinco filhos aqui desamparados. Afinal, sou o homem da casa! Se fosse só por alguns dias, uma viagem de ida e volta, tudo bem. Mas eles querem que eu fique lá, e isso não posso fazer. Levá-los comigo também está fora de questão; viver no Rio de Janeiro é muito mais caro do que aqui.
Chico: – É mesmo uma pena, Santo. Depois de ter cantado no Teatro Guaíra, na Ópera de Arame...
Professor: – No canal quatro, canal sete, canal nove... Só faltou o doze, certo?!
Santo: – Mas isso porque o equipamento deles não suportava a potência da minha voz. Aquilo foi um absurdo! E isso que dizem que é o canal mais assistido. Deveriam ter dinheiro suficiente pra comprar um equipamento melhor!
Marques: – Bom, fazer o quê... Mas sabe, Santo, lá na frente você vai ver que valeu à pena priorizar sua família.
Nego: – Isso com certeza!
O Professor sorri e solta um longo suspiro enquanto eles falam.
Professor: – Marques, agora é sua vez.
Marques: – Bom, eu não tenho nada muito excepcional pra contar. Apenas o troféu que recebi de meus alunos como o melhor professor da escola... – os demais se surpreendem, exceto o Professor, e todos novamente aplaudem.
Chico: – Apenas isso? Quanta humildade, hein!
Marques: – E isso que eu nem sou formado! Entrei na profissão porque precisavam de um substituto pro professor de Educação Física e eu estava quase sempre sem atividade no meu trabalho. E aquele professor que eles tinham antes era péssimo! Só dava luta e futebol, e isso sem ensinar. “Peguem essa bola, essas luvas e se virem”.
Professor: – E a família?
Marques: – Ah, meus filhos ficaram muito orgulhosos! “Bem merecido” disseram eles. Sabem, meu filho mais velho agora é professor de educação física também. Que orgulho!
Professor: – E a esposa?
Marques se desanima um pouco.
Marques: – Ela nem ligou... Já deve estar acostumada, eu acho.
Nego: – Eu ouvi falar que uma das suas filhas está namorando...
Marques: – Ah, sim, nem me fale.
Santo: – É com aquele cabeludo?
Chico: – E você permitiu?
Eles começam a se atropelar nas falas. Marques pede a palavra erguendo as mãos.
Marques: – Ei, Ei! Deixem-me falar! É claro que eu não ia deixar minha filha namorar um qualquer, então quando aquele cabeludo veio me pedir aprovação, eu disse que ele teria de cortar o cabelo se quisesse mesmo algo sério com minha filha – faz uma pausa – e não é que ele cortou mesmo?!
Chico (caçoando, surpreso): – Ha há, mas que filho da mãe!
Nego: – Então você deixou mesmo, amigo?
Marques: – Mas sabe, ele até que é um bom rapaz. Acho que era só mesmo o cabelo que me dava aquela má impressão.
Chico: – Que bom, meu caro. Em breve você estará como eu, vendo os filhos casados e os primeiros netinhos correndo pela casa, naquela algazarra! Eu por enquanto só tenho dois, mas meu terceiro filho já está providenciando mais um. Adoro levar esses meninos pra passear até o trilho do trem, encostar o ouvido com eles no chão pra ouvir o som dos vagões se aproximando... E eles também adoram, fazem uma festa! Formidável. Falando nisso, creio que agora seja minha vez.
Professor: – Vá em frente, Chicão.
Chico: – Pois bem, eu poderia falar da briga que separei...
Juninho: – Você separou uma briga?
Chico: – Sim, sim, eram dois colegas meus. Não sei por qual razão estavam querendo se matar. E isso no meio do trabalho. Depois de separarmos a briga, fui conversar com cada um em particular e os convenci que eles iriam morrer se não parassem com aquilo. Querem saber os detalhes?
Juninho: – Eu quero!
A campainha toca e o Professor se vira para a porta que está a cerca de três metros de distância.
Professor: – Acho que vai ter que ficar para a próxima, Chicão – depois grita, ainda com o rosto em direção à porta – Marta! Tem gente na porta!
Ouve-se a voz da senhora de outro cômodo da casa, provavelmente a cozinha.
Marta: – Já vai, já vou atender! Por que é que você não levanta dessa cadeira e atende?
Professor: – Até eu chegar lá, já foram embora!
Marta: – Está bem, já estou indo lá!
Marta chega à porta e começa a destrancar as fechaduras, a tetra-chave, os cadeados...
Professor (se voltando para a mesa): – Pois bem, senhores, o papo estava bom. Mas como vocês sabem, o grande vencedor desta rodada, como sempre, sou eu – ele lança sobre a mesa as dez cartas: uma trinca de Ás, uma trinca de Reis e uma sequência de Espadas – muito obrigado pelo jogo.
A porta se abre ante a última frase do Professor. Um jovem casal entra, antecedido de uma menininha de cinco a seis anos que corre para os braços do Professor. Este a pega no colo, sorridente.
Nina: – Oi vovô! Tudo bem com o senhor? Com quem o senhor estava falando?
Professor: – Ora minha Neguinha, tudo bem sim! Eu estava só pensando alto... E você, tem alguma novidade pra me contar?
Nina: – Ah, hoje eu aprendi a pular corda!
Professor: – É mesmo?
O casal vai até o Professor e Nina.
Rafael: – Calma, Nina! Mal chega e já pula no colo do vovô! – estende a mão e cumprimenta o Professor – tudo bem com o senhor?
Professor: – Sim, estou bem! – estende a mão para a jovem – Tudo bem, eu gosto de segurar essa Neguinha linda nos braços, é a cara da mãe!
Mariana (piscando enquanto cumprimenta o Professor): – E a cara do avô, também!
Professor (se voltando para Nina): – Mas então, você ia contando de pular corda...
Nina: – Sim. Mas é uma coisa difícil, vovô! Você também pulava corda quando era criança que nem eu?
Professor: – Eu não, isso é coisa de menina. No meu tempo eu jogava bolinhas de gude...

Fim.

Escrito no primeiro semestre de 2015.