A chuva
descia incessante e carregada pelas ruas da cinzenta cidade. Uma noite escura e
densa. Um último crime. Um único deslize. Um caminho sem saída, cujo primeiro
passo fora dado há muito tempo, mas as consequências só eram vistas agora.
Tentando se ocultar entre as sombras da noite, Enzo corria com todas as suas
forças numa fuga desenfreada de um inimigo que ele ainda nem vira, mas cuja
presença à sua espreita era mais que um pressentimento – era uma certeza.
Vestido em preto para não ser notado, pés descalços para não fazer barulho;
parou por alguns segundos em um beco escuro, encostando-se nas paredes para
recuperar as energias. Quando o som das sirenes começou a ser audível
novamente, ele soube que teria de continuar. No entanto, a polícia não era sua
maior preocupação – nunca fora. Mas aquelas sirenes eram o alerta de que
precisava para trazer-lhe à memória seu grande temor: o Justiceiro que rondava
pelas ruas, todas as noites, a caçar criminosos. Diziam que apenas ver seu
rosto era a maior condenação que se poderia experimentar – e esta fama já era
razão suficiente para não querer saber mais.
A chuva
começava a enfraquecer, mas isso não era algo bom. Agora ele podia ser visto;
seus passos, ouvidos. Nada mais camuflaria seus rastros. Ele precisava pensar;
precisava de algum lugar para se esconder, ou seria vencido pelo cansaço. E
após tantas peripécias bem sucedidas, sua derrota seria em uma pueril corrida?
Não, não podia terminar assim. Devia haver algum lugar onde não o procurariam,
onde ninguém jamais se atreveria a entrar. Mas onde? Avistou um matagal a
poucos metros de distância e infiltrou-se: péssima ideia. A chuva tornara a
terra em lama; agora além de ouvidos, seus passos estariam gravados. Isso, se
ele conseguisse desatolar os pés. Caso contrário, a morte era certa – ou talvez
algo pior.
As sirenes
estavam próximas. Abaixou-se na esperança de ser camuflado pela mata alta. Os
três carros de polícia que o procuravam passaram por ali, e nenhum dos oficiais
o viu. Sentiu um breve alívio: talvez pudesse ficar escondido até ter certeza
de que estavam longe. Se fosse em direção ao norte, sairia dos limites da
cidade e estaria livre; poderia se esconder em alguma fazenda, ou mesmo na
floresta por um tempo, até que as coisas esfriassem. Até que o sangue dela
escoasse com a chuva... De súbito, percebeu um estranho movimento na mata.
Virou-se para os lados, para trás, para frente – nada. Talvez fosse um esquilo,
um rato, uma coruja, uma cobra – e um vento gélido arrepiou sua nuca. Não era
um animal.
Com muito
esforço, desatolou seus pés da lama e pôs-se a caminhar sorrateiramente.
Tentava ir para o norte, quando um medo indescritível tomou conta de sua mente.
Um vulto branco a dez metros dali. Era Ele. O Justiceiro estava próximo – e já
o tinha visto. Enzo tentou desesperadamente correr, mas a lama grossa o
arrastava rumo ao chão. Avistou uma cerca metálica à esquerda; agarrou-se às
vigas enferrujadas pela chuva e entrou no cemitério da cidade.
A chuva
cessara de vez. Uma densa e cinzenta névoa cobria o lugar, deixando tudo
invisível a mais de um metro de distância. Ali dentro, o chão era de pedras.
Ele poderia correr, mas seu adversário também. Não seria visto na névoa, mas
também não conseguiria ver. Também havia árvores por ali, em maioria secas,
além das lápides e alguns arbustos espinhosos. Sentando-se atrás de uma árvore,
tentava tirar o excesso de lama preso em seus pés; quando um raio cortou o céu
e deixou à mostra, por um milésimo de segundo, uma presença ameaçadora poucos
metros à frente. A silhueta branca de um homem que o encarava; o rosto
encoberto por um capuz e uma máscara, também brancos. Parecia um fantasma, mas
seus lentos e pesados passos podiam ser ouvidos caminhando em direção ao jovem
criminoso. Enzo se levantou. A névoa ainda cobria tudo à sua frente, mas ele
tinha certeza do que havia visto e, principalmente, do que estava ouvindo.
Correu para a direita, e sentiu que seu perseguidor fazia o mesmo, a menos de
dois metros dali. Parou de súbito, percebendo que o vulto já estava novamente à
sua frente. Mais um passo e daria de cara com Ele. Virou-se para a esquerda,
sabendo que adentraria ainda mais no labirinto de lápides – mas não importava,
desde que pudesse despistá-lo. Sentia-o correr atrás dele e se apressava cada
vez mais, desviando das lápides que surgiam no caminho. Até o som dos passos
sumir.
A névoa
estava sumindo gradualmente. Enzo diminuiu seu ritmo e olhou para trás.
Ninguém. Poderia pensar que Ele havia se cansado, ou que o havia despistado,
mas não tinha certeza, tampouco acreditava que seria tão fácil. Foi quando se
virou de frente e o viu. Freou seus pés com máxima força até escorregar e cair.
A poucos passos dele estava o Justiceiro. A estranha figura vestida de branco,
coberta dos pés à cabeça, quase como um fantasma, olhando fixamente para ele.
Levantou-se saltando para trás e correu, mas parou novamente. Ele estava ali, à
sua frente, outra vez. Não ouvia mais seus passos, apenas o som do vento quando
ele se movimentava. Era rápido demais. Correu em outra direção, e lá estava
ele; virou-se para outro lado, e ele estava lá; e de novo; e de novo. Não
importava para onde ia, parecia parar sempre no mesmo lugar, com o implacável
Justiceiro parado à sua frente. Ofegante e já cansado de correr, parou seus
olhos nos dele, franzindo a testa numa tentativa de parecer hostil.
– QUEM É
VOCÊ? – gritou em um tom agressivo, mas também exausto.
Nada. O
Justiceiro guardava o mais absoluto silêncio, e começou a caminhar lentamente
na direção do rapaz.
– O QUE
VOCÊ QUER? – gritou novamente, enquanto recuava à medida que seu inimigo
avançava – RESPONDA! O QUE VOCÊ QUER DE MIM?
Sem
resposta. Apenas o som de seus passos a se aproximarem lentamente dele. O jovem
recuou até bater suas costas em uma lápide, e foi quando o Justiceiro também
parou de andar. Sem neblina, sem chuva. Ambos iluminados pela fraca luz dos
postes refletida nas lápides. Ambos se encarando sem se mover, até que o rapaz
recuperasse seu fôlego e se erguesse de sua posição furtiva para uma postura
mais agressiva. O medo que antes tivera agora dava lugar à raiva.
– EU NÃO
TENHO MEDO DE VOCÊ! – foi seu último brado, antes de avançar furiosamente na
direção do Justiceiro e empurrá-lo. Ele recuou com o impacto, mas não reagiu:
apenas se endireitou e continuou parado, sem dizer nada.
– NÃO VAI
FAZER NADA, SEU COVARDE? – continuou, agora desferindo um soco no rosto do
adversário, que mais uma vez apenas se endireitou e continuou parado.
Ainda mais
irritado, deu-lhe outro soco no rosto, e mais outro no estômago; em seguida,
desferiu um forte chute e ele cambaleou, mas continuou sem reagir. Pegou-o pela
gola da roupa, que agora estava cheia de manchas de lama, e o arremessou a
metros de distância. O Justiceiro caiu, raspando-se em alguns espinhos que
cobriam uma lápide, e algumas manchas vermelhas começavam a surgir por baixo da
roupa. Levantou-se fraco e logo foi atingido por mais um forte soco na face,
caindo outra vez no chão. Enzo não agüentava mais vê-lo de pé, e aplicou-lhe
mais outros chutes e pontapés antes que ele pudesse se levantar. Depois o
ergueu segurando seu pescoço e o pressionou em uma árvore, para sufocá-lo. As
roupas do Justiceiro estavam rasgadas e cobertas de sangue. Suas mãos agora
seguravam as de Enzo. Talvez tentando finalmente se safar, pensava o jovem.
– AGORA É
TARDE PRA VOCÊ! – ele gritava em fúria.
Foi quando
o Justiceiro, erguendo uma de suas mãos, tirou a máscara que o cobria e expôs a
Enzo seu próprio reflexo rachado.
Afundado em
raiva, em vícios, em
desespero. Um olhar doentio, ao mesmo tempo tão morto e tão
sedento de sangue. Um monstro que destruíra a vida de tantos e a sua própria;
aprisionado em sua própria busca de poder e a suposta liberdade que isso traria.
Um rosto tão cheio de marcas, mas tão ausente de expressão humana.
– Não...
Enzo já
soltara suas mãos do pescoço de seu adversário. Recuava horrorizado, sem
conseguir tirar os olhos daquela imagem. Sua própria imagem. Como ele ficara
assim? Sua busca por poder tinha uma motivação tão justa... Ele só queria
proteger seus entes queridos, só queria libertá-los da pobreza. Queria que
fossem felizes! Mas agora estavam mortos – pelas mãos de seu próprio protetor.
Mortos por sua busca desenfreada de mais poder, sempre mais poder.
“Não se
preocupe, é só um trabalhinho” – foi o que ele disse à sua mãe na primeira vez
em que decidiu se meter com eles. Um assalto, uma noite, nada mais. Até o
momento em que ocorreu. Até aquela adrenalina subir por seu sangue. Até o
dinheiro aparecer em suas mãos.
Uma grana
fácil e, além disso, “divertida”. Apenas mais uma vez; um pouco mais de emoção;
muitas notas azuis a mais... Clientes maiores, pagamento maior. Riscos maiores.
Mais emoção. Por que não montar a própria gangue? É preciso se proteger,
proteger quem está perto. Que tal trabalhar no tráfico? Que tal matar o chefe
da região e tomar seu posto? Que tal isso, hein Enzo?
– Não, não,
não... – Esbarrou suas costas em uma lápide, e voltou como se acordasse de um
pesadelo. Mas continuava nele. Continuou recuando, repetindo a única palavra
que conseguia pronunciar, enquanto as memórias de seus erros invadiam sua mente
num turbilhão de vozes e imagens aterradoras – Não, não, não, NÃO, NÃO, NÃO!!
De súbito,
o chão sob seus pés terminara. Num tropeço, Enzo caía em uma cova aberta. Seus
erros, seus crimes – suas escolhas. Tudo o que fizera convergia para aquele
momento:
“Você está
obcecado! Está matando todos ao seu redor e eu não aguento mais ver esse
massacre” – foi o que ela lhe disse, já segurando uma de suas malas; o bilhete
estava sobre a mesa, em palavras bem mais amenas. De acordo com seus cálculos,
haveria tempo de sair de lá e chegar ao aeroporto antes que ele soubesse. Mas
ele havia chegado mais cedo que o combinado. E agora ela precisava encará-lo –
“E... Eu não quero ser a próxima!”
Mas a porta
se fechou antes que pudesse terminar a frase. Não, ela não sairia dali. Ela
podia denunciá-lo. Ela podia até já o ter feito. Não havia outra maneira. Não
havia mais nenhum outro sentimento, senão a raiva desferida em golpes cruéis,
em meio aos pedidos de clemência. Os desesperados pedidos... “Não, não, não...”
O golpe
final. O chão da cova e as costas de Enzo se colidiram em um baque surdo. O
Justiceiro caminhou até a beira da cova e parou ali para vê-lo. Agora, uma leve
chuva caía sobre a cidade. A água que escorria sobre a roupa do Justiceiro
levava consigo as manchas de sangue; e o sangue, por sua vez, escoava junto à
água pela cova aberta. Enzo estava deitado, com os olhos em lágrimas, na
esperança de que estas pudessem levar embora suas lembranças; mas não podiam.
Ele agora chorava como uma criança desolada, quando o Justiceiro o interrompeu.
– Hei!
Enzo! – exclamou. Enzo ergueu seus olhos para ele, sentando-se. Daquela distância,
não conseguia ver seu reflexo nitidamente na máscara espelhada, como vira antes
– Que está fazendo aí dentro?
– Eu... Eu
sou um idiota! – Enzo respondeu soluçando – Eu traí meus amigos, eu deixei
minha família morrer... Não... Eu os matei. Eu me fiz acreditar que eu era o
inocente, mas era mentira. Foi tudo culpa minha. Fui eu que os trouxe a
desgraça. Fui eu que escolhi tudo isso! Sou um monstro! Eu sou... Um monstro...
– e desatou a chorar novamente.
– Que bom
que você reconheceu seus erros, e ainda se arrependeu deles. Agora está
conseguindo ver o que fez com os outros e consigo mesmo. Meus parabéns.
– Como,
parabéns? Eles estão MORTOS, todos mortos! Eu estou morto. Sou uma casca sem
alma, não sou digno nem da pior punição! Não mereço... – e foi interrompido
novamente.
– Então vai
ficar aí se martirizando e tendo pena de si mesmo, como se isso fosse resolver
alguma coisa? – Enzo tentou resmungar um “o quê?”, mas não deu tempo – É isso
mesmo, você ouviu bem. Punir você, mesmo com a pior das sentenças, não vai
desfazer o que você fez. Não vai trazê-los de volta, Enzo. E também não dará
fim ao sofrimento.
Enzo tentou
tirar as lágrimas dos olhos, para ver direito seu interlocutor.
– Eu sei
disso! – respondeu impaciente, porém ainda melancólico e já abaixando a cabeça
novamente – mas o que eu posso fazer? Já é tarde de mais pra eles.
– Mas não é
tarde demais pra você. – Enzo ergueu novamente a cabeça – Enzo, você acha que é
o único que já fez escolhas erradas na vida? Com maiores ou menores
consequências, todos fazem. E muitos só caem em si quando já é tarde pra
desfazer. Depois disso, alguns ficam se punindo, atolados na lama. Mas outros
se levantam; recomeçam suas vidas, procurando ajudar a outros que também estão
caindo sem perceber, para que não cometam o mesmo erro que eles, para que não
tomem o mesmo rumo de destruição. Há muitos como você, Enzo. Você não pode
fazer pessoas voltarem à vida, mas pode impedir que outras morram. Seria muito
mais útil do que ficar aí, esperando pela morte.
Houve uma
pausa de alguns instantes naquela conversa. Enzo tentava pensar em tudo o que
acabara de ouvir. Era uma chance. De recomeçar, de ser alguém diferente, de
fazer diferente; ajudar outros como ele. De salvar vidas. Mas, seria isso
possível a ele?
– E eu
posso lhe ajudar a fazer isso, se você quiser – continuou o Justiceiro – Venha
comigo – ele estendeu a mão para Enzo – e vou lhe mostrar.
– Eu... Eu
gostaria muito, mas como posso ser livre? As leis daqui são claras, o preço dos
meus erros é a morte!
– Não
precisa se preocupar, Enzo. Eu já paguei o seu preço.
Enzo se
levantou e olhou fixamente para ele.
– Quem é
você? – e o Justiceiro tirou sua segunda, e última, máscara.
A chuva
agora descia suavemente pelas ruas da cidade. Um amanhecer se erguia ao longe,
iluminando tudo ao redor. Enzo estendeu sua mão ao Justiceiro que, segurando-a,
o tirou de dentro da cova. Ambos partiram, com o jovem apoiado nos ombros de
seu novo tutor. Atrás deles, a sombra de uma enorme cruz cobria a cova vazia.