terça-feira, 17 de maio de 2016

Jogo de Pife


Juninho: – Eu faço três!
Santo: – Três? Você está com o quê? O Ás, o Rei e a Dama de espadas?
Nego (rindo): – Calma, Santo. Está na cara que ele não entendeu o jogo!
Santo (sussurra e pisca para Nego): – Eu sei, eu sei...
Marques: – Juninho, você tem certeza que vai pedir pra fazer três?
Juninho: – Claro que sim! Olha aqui – ele vira seu maço de cartas para Marques, que o recua com as mãos.
Marques: – Não, não! Eu não quero ver as suas cartas!
Chico (rindo enquanto fala): – Nem precisava virar pra ele, até daqui eu já to vendo tudo!
– CHICO! – exclamam Santo, Nego e Marques em coro. Juninho recolhe suas cartas rapidamente e esconde-as no colo. Uma enorme gargalhada vinda do outro extremo da mesa preenche o ambiente. Ela pertence ao mais velho dos seis ali presentes.
Professor: – Que coreografado, hein?! Ficaram ensaiando antes de nós começarmos o jogo?
Os quatro riem um pouco constrangidos, pois Chico já estava rindo antes e ainda não havia parado. Juninho olha para Nego, o próximo jogador a falar.
Nego: – Eu faço uma.
Santo: – Ah, eu não faço nada.
Professor: – Então comece, Chicão.
Chico joga uma carta na mesa.
Chico: – Três de copas.
Marques: – Minha vez. Dez de copas.
Juninho (animado): – Agora é minha vez! Ás de paus! Há!
Os cinco fitam Juninho com olhar interrogativo.
Marques: – Você não tem nenhuma carta de copas, Juninho?
Juninho: – Não, mas não precisa né?! Com essa eu ganho, é um Ás!
Chico: – Xi...
Professor: – É um Ás, mas como a gente começou pelo naipe de copas, ela não vale nada nessa rodada. Só se fosse do naipe de copas, ou se fosse trunfo...
Nego: – Trunfo como essa daqui! – e joga um Três de espadas.
Professor: – Viu, com essa dá pra ganhar.
Juninho (indignado): – Mas, mas, ela é pequenininha! É só um Três, como vai ganhar de um Ás ou de um Dez? Isso não é justo!
Santo: – Eu sabia que ele não tinha entendido! – e começa o burburinho na mesa.
Chico (olhando para o Professor): – Ai, ai... E agora, José? Melhor por ordem na casa, Mestre.
Professor (acenando com as mãos): Calma, pessoal. Sem encrenca. Acho melhor mudarmos para outro jogo...
Santo: – É verdade! – e os outros concordam com a cabeça. Marques começa a recolher e embaralhar as cartas que eles vão jogando sobre a mesa.
Professor: – Vamos jogar algo mais tranquilo, pra que enquanto jogamos vocês possam me contar sobre suas peripécias desses últimos dias... – e os cinco se animam ao ouvir essa última frase.
Chico: – Agora está falando minha língua! Vamos saber o que esta garotada anda aprontando...
Marques: – Certo, mas o que vamos jogar então?
Juninho: – Vamos jogar pife!
Santo: – Pife? É, pode ser...
Nego: – Mas esse você sabe certo, né Juninho?
Juninho: – Claro que sei! Nove cartas pra cada um; compra e descarta uma a cada rodada; tem que fazer sequências do mesmo naipe ou três cartas de naipes diferentes; e ganha quem fazer isso com as nove ou com dez cartas.
Chico: – Muito bem, Júnior!
Santo: – Mas vamos jogar isso mesmo?
Marques: – Professor?
Os cinco olham para o Mestre, esperando uma resposta. Ele para um pouco, pensa e depois responde.
Professor (sorridente): – Tudo bem, joguemos pife então!
Juninho: – Oba! – Todos se animam igualmente e Marques começa a distribuir as cartas.
Professor: – Muito bem, então quem vai começar os relatos dessa semana?
Juninho: – Eu! Eu quero começar!
Professor: – Alguma objeção? – os demais acenam para que ele comece – bom, por unanimidade, comece Júnior! Qual foi a sua peripécia?
Juninho: – Pessoal, foi muito divertido! Uns colegas meus da escola me convidaram pra jogar bolinhas de gude, mas eu não tinha nenhuma. Aí tive uma ideia! Peguei umas bolinhas de chumbo que o meu pai tem lá em casa, não sei pra quê ele as usa, e usei-as no lugar. Ganhei de todos eles, voltei pra casa com uma sacola cheia de bolinhas de gude!
Chico (caçoando): – Todas elas quebradas, né? – os outros quatro riem também.
Juninho: – Ah, mas foi divertido!
Marques: – E o seu pai, não sentiu falta das bolinhas de chumbo?
Juninho (hesitante): – Bom, é... Ele me deu uma surra depois e jogou fora todas as bolinhas que eu tinha conseguido... – e mais uma vez os cinco desatam a rir, deixando Juninho constrangido.
Professor (irônico): – E hoje aprendemos que trapacear com bolinhas de chumbo não compensa. Quem é o próximo? Que tal você, Nego?
Nego se ajeita em sua cadeira e estufa o peitoral.
Nego: – Meus caros, fui eleito o melhor jogador de vôlei do estado!
Chico: – Olha só! Parabéns! – todos o aplaudem.
Marques: – Verdade. Eu soube que você até deu entrevista pro canal doze!
Nego: – Ah sim, e isso foi logo depois de ganharmos o último jogo do campeonato estadual. O treinador havia me deixado na reserva e estávamos perdendo, mas ele havia feito isso só para me colocar no final e virarmos o jogo! Vocês deviam ver, foi formidável!
Chico: – Que beleza, hein?! Só vinte e poucos anos e já fazendo história!
Santo: – E a sua jovem amada?
Nego: – Ah, a Martinha está ótima! Sentimos falta um do outro quando fui jogar no interior, mas ela se alegrou muito com minha vitória e me viu na televisão. Ela é maravilhosa!
Marques (caçoando): – Então estão valendo à pena os pinicos cheios que a sogrinha joga pela janela pra te molhar?
Nego (muda o tom, incomodado): – Ah, nem me lembre disso!
Professor: – Muito bem, muito bem. Deixemos os pinicos de lado e vamos para o próximo. Santo?
Santo: – Claro, Professor. Mas não posso dizer que tenho boas novas. Como sabem, além de trabalhar como professor eu sou cantor lírico, mas nunca conseguiria realmente viver disso aqui. Porém, alguns dias atrás, minha mestra de canto me convidou para fazer parte de uma camerata no Rio de Janeiro, como profissão mesmo, inclusive com passagem e apartamento pago para que eu morasse lá. Mas tive que recusar.
Nego: – O quê?
Juninho: – Por quê?
Santo: – Porque, Juninho, o contrato dizia respeito somente a mim, e eu não posso ir e deixar minha esposa e os cinco filhos aqui desamparados. Afinal, sou o homem da casa! Se fosse só por alguns dias, uma viagem de ida e volta, tudo bem. Mas eles querem que eu fique lá, e isso não posso fazer. Levá-los comigo também está fora de questão; viver no Rio de Janeiro é muito mais caro do que aqui.
Chico: – É mesmo uma pena, Santo. Depois de ter cantado no Teatro Guaíra, na Ópera de Arame...
Professor: – No canal quatro, canal sete, canal nove... Só faltou o doze, certo?!
Santo: – Mas isso porque o equipamento deles não suportava a potência da minha voz. Aquilo foi um absurdo! E isso que dizem que é o canal mais assistido. Deveriam ter dinheiro suficiente pra comprar um equipamento melhor!
Marques: – Bom, fazer o quê... Mas sabe, Santo, lá na frente você vai ver que valeu à pena priorizar sua família.
Nego: – Isso com certeza!
O Professor sorri e solta um longo suspiro enquanto eles falam.
Professor: – Marques, agora é sua vez.
Marques: – Bom, eu não tenho nada muito excepcional pra contar. Apenas o troféu que recebi de meus alunos como o melhor professor da escola... – os demais se surpreendem, exceto o Professor, e todos novamente aplaudem.
Chico: – Apenas isso? Quanta humildade, hein!
Marques: – E isso que eu nem sou formado! Entrei na profissão porque precisavam de um substituto pro professor de Educação Física e eu estava quase sempre sem atividade no meu trabalho. E aquele professor que eles tinham antes era péssimo! Só dava luta e futebol, e isso sem ensinar. “Peguem essa bola, essas luvas e se virem”.
Professor: – E a família?
Marques: – Ah, meus filhos ficaram muito orgulhosos! “Bem merecido” disseram eles. Sabem, meu filho mais velho agora é professor de educação física também. Que orgulho!
Professor: – E a esposa?
Marques se desanima um pouco.
Marques: – Ela nem ligou... Já deve estar acostumada, eu acho.
Nego: – Eu ouvi falar que uma das suas filhas está namorando...
Marques: – Ah, sim, nem me fale.
Santo: – É com aquele cabeludo?
Chico: – E você permitiu?
Eles começam a se atropelar nas falas. Marques pede a palavra erguendo as mãos.
Marques: – Ei, Ei! Deixem-me falar! É claro que eu não ia deixar minha filha namorar um qualquer, então quando aquele cabeludo veio me pedir aprovação, eu disse que ele teria de cortar o cabelo se quisesse mesmo algo sério com minha filha – faz uma pausa – e não é que ele cortou mesmo?!
Chico (caçoando, surpreso): – Ha há, mas que filho da mãe!
Nego: – Então você deixou mesmo, amigo?
Marques: – Mas sabe, ele até que é um bom rapaz. Acho que era só mesmo o cabelo que me dava aquela má impressão.
Chico: – Que bom, meu caro. Em breve você estará como eu, vendo os filhos casados e os primeiros netinhos correndo pela casa, naquela algazarra! Eu por enquanto só tenho dois, mas meu terceiro filho já está providenciando mais um. Adoro levar esses meninos pra passear até o trilho do trem, encostar o ouvido com eles no chão pra ouvir o som dos vagões se aproximando... E eles também adoram, fazem uma festa! Formidável. Falando nisso, creio que agora seja minha vez.
Professor: – Vá em frente, Chicão.
Chico: – Pois bem, eu poderia falar da briga que separei...
Juninho: – Você separou uma briga?
Chico: – Sim, sim, eram dois colegas meus. Não sei por qual razão estavam querendo se matar. E isso no meio do trabalho. Depois de separarmos a briga, fui conversar com cada um em particular e os convenci que eles iriam morrer se não parassem com aquilo. Querem saber os detalhes?
Juninho: – Eu quero!
A campainha toca e o Professor se vira para a porta que está a cerca de três metros de distância.
Professor: – Acho que vai ter que ficar para a próxima, Chicão – depois grita, ainda com o rosto em direção à porta – Marta! Tem gente na porta!
Ouve-se a voz da senhora de outro cômodo da casa, provavelmente a cozinha.
Marta: – Já vai, já vou atender! Por que é que você não levanta dessa cadeira e atende?
Professor: – Até eu chegar lá, já foram embora!
Marta: – Está bem, já estou indo lá!
Marta chega à porta e começa a destrancar as fechaduras, a tetra-chave, os cadeados...
Professor (se voltando para a mesa): – Pois bem, senhores, o papo estava bom. Mas como vocês sabem, o grande vencedor desta rodada, como sempre, sou eu – ele lança sobre a mesa as dez cartas: uma trinca de Ás, uma trinca de Reis e uma sequência de Espadas – muito obrigado pelo jogo.
A porta se abre ante a última frase do Professor. Um jovem casal entra, antecedido de uma menininha de cinco a seis anos que corre para os braços do Professor. Este a pega no colo, sorridente.
Nina: – Oi vovô! Tudo bem com o senhor? Com quem o senhor estava falando?
Professor: – Ora minha Neguinha, tudo bem sim! Eu estava só pensando alto... E você, tem alguma novidade pra me contar?
Nina: – Ah, hoje eu aprendi a pular corda!
Professor: – É mesmo?
O casal vai até o Professor e Nina.
Rafael: – Calma, Nina! Mal chega e já pula no colo do vovô! – estende a mão e cumprimenta o Professor – tudo bem com o senhor?
Professor: – Sim, estou bem! – estende a mão para a jovem – Tudo bem, eu gosto de segurar essa Neguinha linda nos braços, é a cara da mãe!
Mariana (piscando enquanto cumprimenta o Professor): – E a cara do avô, também!
Professor (se voltando para Nina): – Mas então, você ia contando de pular corda...
Nina: – Sim. Mas é uma coisa difícil, vovô! Você também pulava corda quando era criança que nem eu?
Professor: – Eu não, isso é coisa de menina. No meu tempo eu jogava bolinhas de gude...

Fim.

Escrito no primeiro semestre de 2015.

sexta-feira, 17 de abril de 2015

Face a Face

A chuva descia incessante e carregada pelas ruas da cinzenta cidade. Uma noite escura e densa. Um último crime. Um único deslize. Um caminho sem saída, cujo primeiro passo fora dado há muito tempo, mas as consequências só eram vistas agora. Tentando se ocultar entre as sombras da noite, Enzo corria com todas as suas forças numa fuga desenfreada de um inimigo que ele ainda nem vira, mas cuja presença à sua espreita era mais que um pressentimento – era uma certeza. Vestido em preto para não ser notado, pés descalços para não fazer barulho; parou por alguns segundos em um beco escuro, encostando-se nas paredes para recuperar as energias. Quando o som das sirenes começou a ser audível novamente, ele soube que teria de continuar. No entanto, a polícia não era sua maior preocupação – nunca fora. Mas aquelas sirenes eram o alerta de que precisava para trazer-lhe à memória seu grande temor: o Justiceiro que rondava pelas ruas, todas as noites, a caçar criminosos. Diziam que apenas ver seu rosto era a maior condenação que se poderia experimentar – e esta fama já era razão suficiente para não querer saber mais.

A chuva começava a enfraquecer, mas isso não era algo bom. Agora ele podia ser visto; seus passos, ouvidos. Nada mais camuflaria seus rastros. Ele precisava pensar; precisava de algum lugar para se esconder, ou seria vencido pelo cansaço. E após tantas peripécias bem sucedidas, sua derrota seria em uma pueril corrida? Não, não podia terminar assim. Devia haver algum lugar onde não o procurariam, onde ninguém jamais se atreveria a entrar. Mas onde? Avistou um matagal a poucos metros de distância e infiltrou-se: péssima ideia. A chuva tornara a terra em lama; agora além de ouvidos, seus passos estariam gravados. Isso, se ele conseguisse desatolar os pés. Caso contrário, a morte era certa – ou talvez algo pior.

As sirenes estavam próximas. Abaixou-se na esperança de ser camuflado pela mata alta. Os três carros de polícia que o procuravam passaram por ali, e nenhum dos oficiais o viu. Sentiu um breve alívio: talvez pudesse ficar escondido até ter certeza de que estavam longe. Se fosse em direção ao norte, sairia dos limites da cidade e estaria livre; poderia se esconder em alguma fazenda, ou mesmo na floresta por um tempo, até que as coisas esfriassem. Até que o sangue dela escoasse com a chuva... De súbito, percebeu um estranho movimento na mata. Virou-se para os lados, para trás, para frente – nada. Talvez fosse um esquilo, um rato, uma coruja, uma cobra – e um vento gélido arrepiou sua nuca. Não era um animal.

Com muito esforço, desatolou seus pés da lama e pôs-se a caminhar sorrateiramente. Tentava ir para o norte, quando um medo indescritível tomou conta de sua mente. Um vulto branco a dez metros dali. Era Ele. O Justiceiro estava próximo – e já o tinha visto. Enzo tentou desesperadamente correr, mas a lama grossa o arrastava rumo ao chão. Avistou uma cerca metálica à esquerda; agarrou-se às vigas enferrujadas pela chuva e entrou no cemitério da cidade.

A chuva cessara de vez. Uma densa e cinzenta névoa cobria o lugar, deixando tudo invisível a mais de um metro de distância. Ali dentro, o chão era de pedras. Ele poderia correr, mas seu adversário também. Não seria visto na névoa, mas também não conseguiria ver. Também havia árvores por ali, em maioria secas, além das lápides e alguns arbustos espinhosos. Sentando-se atrás de uma árvore, tentava tirar o excesso de lama preso em seus pés; quando um raio cortou o céu e deixou à mostra, por um milésimo de segundo, uma presença ameaçadora poucos metros à frente. A silhueta branca de um homem que o encarava; o rosto encoberto por um capuz e uma máscara, também brancos. Parecia um fantasma, mas seus lentos e pesados passos podiam ser ouvidos caminhando em direção ao jovem criminoso. Enzo se levantou. A névoa ainda cobria tudo à sua frente, mas ele tinha certeza do que havia visto e, principalmente, do que estava ouvindo. Correu para a direita, e sentiu que seu perseguidor fazia o mesmo, a menos de dois metros dali. Parou de súbito, percebendo que o vulto já estava novamente à sua frente. Mais um passo e daria de cara com Ele. Virou-se para a esquerda, sabendo que adentraria ainda mais no labirinto de lápides – mas não importava, desde que pudesse despistá-lo. Sentia-o correr atrás dele e se apressava cada vez mais, desviando das lápides que surgiam no caminho. Até o som dos passos sumir.

A névoa estava sumindo gradualmente. Enzo diminuiu seu ritmo e olhou para trás. Ninguém. Poderia pensar que Ele havia se cansado, ou que o havia despistado, mas não tinha certeza, tampouco acreditava que seria tão fácil. Foi quando se virou de frente e o viu. Freou seus pés com máxima força até escorregar e cair. A poucos passos dele estava o Justiceiro. A estranha figura vestida de branco, coberta dos pés à cabeça, quase como um fantasma, olhando fixamente para ele. Levantou-se saltando para trás e correu, mas parou novamente. Ele estava ali, à sua frente, outra vez. Não ouvia mais seus passos, apenas o som do vento quando ele se movimentava. Era rápido demais. Correu em outra direção, e lá estava ele; virou-se para outro lado, e ele estava lá; e de novo; e de novo. Não importava para onde ia, parecia parar sempre no mesmo lugar, com o implacável Justiceiro parado à sua frente. Ofegante e já cansado de correr, parou seus olhos nos dele, franzindo a testa numa tentativa de parecer hostil.

– QUEM É VOCÊ? – gritou em um tom agressivo, mas também exausto.

Nada. O Justiceiro guardava o mais absoluto silêncio, e começou a caminhar lentamente na direção do rapaz.

– O QUE VOCÊ QUER? – gritou novamente, enquanto recuava à medida que seu inimigo avançava – RESPONDA! O QUE VOCÊ QUER DE MIM?

Sem resposta. Apenas o som de seus passos a se aproximarem lentamente dele. O jovem recuou até bater suas costas em uma lápide, e foi quando o Justiceiro também parou de andar. Sem neblina, sem chuva. Ambos iluminados pela fraca luz dos postes refletida nas lápides. Ambos se encarando sem se mover, até que o rapaz recuperasse seu fôlego e se erguesse de sua posição furtiva para uma postura mais agressiva. O medo que antes tivera agora dava lugar à raiva.

– EU NÃO TENHO MEDO DE VOCÊ! – foi seu último brado, antes de avançar furiosamente na direção do Justiceiro e empurrá-lo. Ele recuou com o impacto, mas não reagiu: apenas se endireitou e continuou parado, sem dizer nada.

– NÃO VAI FAZER NADA, SEU COVARDE? – continuou, agora desferindo um soco no rosto do adversário, que mais uma vez apenas se endireitou e continuou parado.

Ainda mais irritado, deu-lhe outro soco no rosto, e mais outro no estômago; em seguida, desferiu um forte chute e ele cambaleou, mas continuou sem reagir. Pegou-o pela gola da roupa, que agora estava cheia de manchas de lama, e o arremessou a metros de distância. O Justiceiro caiu, raspando-se em alguns espinhos que cobriam uma lápide, e algumas manchas vermelhas começavam a surgir por baixo da roupa. Levantou-se fraco e logo foi atingido por mais um forte soco na face, caindo outra vez no chão. Enzo não agüentava mais vê-lo de pé, e aplicou-lhe mais outros chutes e pontapés antes que ele pudesse se levantar. Depois o ergueu segurando seu pescoço e o pressionou em uma árvore, para sufocá-lo. As roupas do Justiceiro estavam rasgadas e cobertas de sangue. Suas mãos agora seguravam as de Enzo. Talvez tentando finalmente se safar, pensava o jovem.

– AGORA É TARDE PRA VOCÊ! – ele gritava em fúria.

Foi quando o Justiceiro, erguendo uma de suas mãos, tirou a máscara que o cobria e expôs a Enzo seu próprio reflexo rachado.

Afundado em raiva, em vícios, em desespero. Um olhar doentio, ao mesmo tempo tão morto e tão sedento de sangue. Um monstro que destruíra a vida de tantos e a sua própria; aprisionado em sua própria busca de poder e a suposta liberdade que isso traria. Um rosto tão cheio de marcas, mas tão ausente de expressão humana.

– Não...

Enzo já soltara suas mãos do pescoço de seu adversário. Recuava horrorizado, sem conseguir tirar os olhos daquela imagem. Sua própria imagem. Como ele ficara assim? Sua busca por poder tinha uma motivação tão justa... Ele só queria proteger seus entes queridos, só queria libertá-los da pobreza. Queria que fossem felizes! Mas agora estavam mortos – pelas mãos de seu próprio protetor. Mortos por sua busca desenfreada de mais poder, sempre mais poder.

“Não se preocupe, é só um trabalhinho” – foi o que ele disse à sua mãe na primeira vez em que decidiu se meter com eles. Um assalto, uma noite, nada mais. Até o momento em que ocorreu. Até aquela adrenalina subir por seu sangue. Até o dinheiro aparecer em suas mãos.

Uma grana fácil e, além disso, “divertida”. Apenas mais uma vez; um pouco mais de emoção; muitas notas azuis a mais... Clientes maiores, pagamento maior. Riscos maiores. Mais emoção. Por que não montar a própria gangue? É preciso se proteger, proteger quem está perto. Que tal trabalhar no tráfico? Que tal matar o chefe da região e tomar seu posto? Que tal isso, hein Enzo?

– Não, não, não... – Esbarrou suas costas em uma lápide, e voltou como se acordasse de um pesadelo. Mas continuava nele. Continuou recuando, repetindo a única palavra que conseguia pronunciar, enquanto as memórias de seus erros invadiam sua mente num turbilhão de vozes e imagens aterradoras – Não, não, não, NÃO, NÃO, NÃO!!

De súbito, o chão sob seus pés terminara. Num tropeço, Enzo caía em uma cova aberta. Seus erros, seus crimes – suas escolhas. Tudo o que fizera convergia para aquele momento:

“Você está obcecado! Está matando todos ao seu redor e eu não aguento mais ver esse massacre” – foi o que ela lhe disse, já segurando uma de suas malas; o bilhete estava sobre a mesa, em palavras bem mais amenas. De acordo com seus cálculos, haveria tempo de sair de lá e chegar ao aeroporto antes que ele soubesse. Mas ele havia chegado mais cedo que o combinado. E agora ela precisava encará-lo – “E... Eu não quero ser a próxima!”

Mas a porta se fechou antes que pudesse terminar a frase. Não, ela não sairia dali. Ela podia denunciá-lo. Ela podia até já o ter feito. Não havia outra maneira. Não havia mais nenhum outro sentimento, senão a raiva desferida em golpes cruéis, em meio aos pedidos de clemência. Os desesperados pedidos... “Não, não, não...”

O golpe final. O chão da cova e as costas de Enzo se colidiram em um baque surdo. O Justiceiro caminhou até a beira da cova e parou ali para vê-lo. Agora, uma leve chuva caía sobre a cidade. A água que escorria sobre a roupa do Justiceiro levava consigo as manchas de sangue; e o sangue, por sua vez, escoava junto à água pela cova aberta. Enzo estava deitado, com os olhos em lágrimas, na esperança de que estas pudessem levar embora suas lembranças; mas não podiam. Ele agora chorava como uma criança desolada, quando o Justiceiro o interrompeu.

– Hei! Enzo! – exclamou. Enzo ergueu seus olhos para ele, sentando-se. Daquela distância, não conseguia ver seu reflexo nitidamente na máscara espelhada, como vira antes – Que está fazendo aí dentro?

– Eu... Eu sou um idiota! – Enzo respondeu soluçando – Eu traí meus amigos, eu deixei minha família morrer... Não... Eu os matei. Eu me fiz acreditar que eu era o inocente, mas era mentira. Foi tudo culpa minha. Fui eu que os trouxe a desgraça. Fui eu que escolhi tudo isso! Sou um monstro! Eu sou... Um monstro... – e desatou a chorar novamente.

– Que bom que você reconheceu seus erros, e ainda se arrependeu deles. Agora está conseguindo ver o que fez com os outros e consigo mesmo. Meus parabéns.

– Como, parabéns? Eles estão MORTOS, todos mortos! Eu estou morto. Sou uma casca sem alma, não sou digno nem da pior punição! Não mereço... – e foi interrompido novamente.

– Então vai ficar aí se martirizando e tendo pena de si mesmo, como se isso fosse resolver alguma coisa? – Enzo tentou resmungar um “o quê?”, mas não deu tempo – É isso mesmo, você ouviu bem. Punir você, mesmo com a pior das sentenças, não vai desfazer o que você fez. Não vai trazê-los de volta, Enzo. E também não dará fim ao sofrimento.

Enzo tentou tirar as lágrimas dos olhos, para ver direito seu interlocutor.

– Eu sei disso! – respondeu impaciente, porém ainda melancólico e já abaixando a cabeça novamente – mas o que eu posso fazer? Já é tarde de mais pra eles.

– Mas não é tarde demais pra você. – Enzo ergueu novamente a cabeça – Enzo, você acha que é o único que já fez escolhas erradas na vida? Com maiores ou menores consequências, todos fazem. E muitos só caem em si quando já é tarde pra desfazer. Depois disso, alguns ficam se punindo, atolados na lama. Mas outros se levantam; recomeçam suas vidas, procurando ajudar a outros que também estão caindo sem perceber, para que não cometam o mesmo erro que eles, para que não tomem o mesmo rumo de destruição. Há muitos como você, Enzo. Você não pode fazer pessoas voltarem à vida, mas pode impedir que outras morram. Seria muito mais útil do que ficar aí, esperando pela morte.

Houve uma pausa de alguns instantes naquela conversa. Enzo tentava pensar em tudo o que acabara de ouvir. Era uma chance. De recomeçar, de ser alguém diferente, de fazer diferente; ajudar outros como ele. De salvar vidas. Mas, seria isso possível a ele?

– E eu posso lhe ajudar a fazer isso, se você quiser – continuou o Justiceiro – Venha comigo – ele estendeu a mão para Enzo – e vou lhe mostrar.

– Eu... Eu gostaria muito, mas como posso ser livre? As leis daqui são claras, o preço dos meus erros é a morte!

– Não precisa se preocupar, Enzo. Eu já paguei o seu preço.

Enzo se levantou e olhou fixamente para ele.

– Quem é você? – e o Justiceiro tirou sua segunda, e última, máscara.


A chuva agora descia suavemente pelas ruas da cidade. Um amanhecer se erguia ao longe, iluminando tudo ao redor. Enzo estendeu sua mão ao Justiceiro que, segurando-a, o tirou de dentro da cova. Ambos partiram, com o jovem apoiado nos ombros de seu novo tutor. Atrás deles, a sombra de uma enorme cruz cobria a cova vazia.

Fuga